ORGULHO DA VERGONHA

Cristovam Buarque
Correio Braziliense, Opinião, de 07/02/2001


A Organização Internacional do Trabalho divulgou na semana passada um relatório onde mostra que, em pleno século XXI, o Brasil ainda apresenta um quadro vergonhoso de trabalho infantil. Mas a ênfase dada por muitos analistas é de que esse número (7,7 milhões, em 1998) representa uma redução de 20% no número de crianças trabalhando em relação a 1992. Nesse ritmo, levaríamos trinta anos para erradicar o trabalho infantil. Mais tempo do que se passou entre os decretos da Lei do Ventre Livre e da Lei Áurea. E há quem comemore o avanço.

O que esse comportamento mostra é um desvio moral da elite brasileira: considerar estar cumprindo seu papel com as massas pobres do país, sempre que um passo qualquer é dado a favor dos mais pobres. Foi assim durante a escravidão.

Em 1871, quando o Brasil era um dos únicos países a tolerar, usar e explorar a escravidão, a aristocracia brasileira passou a se orgulhar diante do mundo pelo fato de ter uma lei que declarava livre o filho de um escravo. Sem fazer alarde de que a liberdade só viria depois que ele fizesse 21 anos, sob a condição de que trabalhasse como escravo até então e desde que nenhum de seus familiares tentasse fugir durante todo aquele longo período. Esse é o humanismo da elite brasileira * como passou a ser conhecido : *só para inglês ver*.

Em 1885, mais uma lei humanista declarou livres os escravos que tivessem mais de 60 anos. Quando já não tinham mais força para trabalhar, depois de décadas submetidos à exploração de quando não tinham como se manter, os donos dos escravos, humanitariamente, mandavam-nos para longe, tiravam-nos da lista dos que comiam as sobras da produção das fazendas.

É surpreendente que a Lei dos Sexagenários tenha vindo quando a própria escravidão já tinha sido abolida, em caráter unilateral, no Ceará. O mesmo Ceará onde hoje existe uma placa, na frente do aeroporto, dizendo que se orgulha de ter 93% de suas crianças matriculadas em escolas, no lugar de dizer que sente vergonha por ter 7% fora da escola.

Essa é a história moral da elite brasileira, que agora se repete no caso do trabalho infantil. Negar que algo está melhorando é pouco inteligente, mas vangloriar-se diante do que falta fazer é muito indecente. Todo governo tem direito de dizer o que fez, mas tem a obrigação de pedir desculpas pelo que ainda falta fazer, mesmo que tenha feito muito e a falta não seja sua culpa.

O problema do trabalho infantil no século XXI, como o da escravidão no século XIX, não pode ser tratado como assunto de estatísticas, de avanços paulatinos. Tem que ser tratado como assunto da ética, com a necessidade de gestos radicais e imediatos. E eles são possíveis do ponto de vista técnico. Difíceis do ponto de vista moral e mesmo emocional, porque a elite brasileira não sofre com a situação daquelas crianças * no máximo se preocupa com a imagem que passa para o resto do mundo. E age sempre de maneira incompleta, apenas para *enganar os ingleses*.

A escravidão só foi abolida 44 anos depois de os ingleses, também por interesses econômicos, tomarem medidas para dificultar o tráfico internacional de escravos. Cada gesto era tímido e visava *enganar os ingleses*. Mesmo o radical gesto da princesa Isabel carregou a hipocrisia e a timidez de libertar os escravos do trabalho sem lhes dar terras para trabalhar.

Agora, o Brasil desperta para o trabalho infantil depois de tantas denúncias e críticas internacionais contra a forma como nosso país trata nossas crianças. É mais um gesto de defesa de imagem do que de construção da alma do Brasil. É como se o errado não fosse ter crianças trabalhando, mas parecer para o mundo que o trabalho infantil existe. E, como há mais de cem anos, nos defendemos outra vez dizendo que as coisas estão melhorando.

A seguir o ritmo da redução entre 1992 e 1998, teremos acabado o trabalho infantil daqui a trinta anos, em 2031. Quase duas vezes mais tempo do que o decorrido entre a lei do Ventre Livre e a da Abolição. Ou seja, o Brasil piorou a marca da velocidade ao tentar *enganar os ingleses*, ficou mais insensível e mais cínico. Antes eliminava lentamente a escravidão, para no final libertar os escravos sem dar-lhes a terra que precisavam para sobreviver, agora eliminam calmamente o trabalho infantil sem garantir a escola de qualidade que as crianças precisarão para sobreviver no mundo moderno. Eliminar o trabalho infantil sem dar escola às crianças é o mesmo que abolir a escravidão sem dar terra aos escravos. Não basta.

O Brasil precisa ser radical nos assuntos de ética. Não basta colocar juiz na cadeia e cassar senador, para ser ético o Brasil precisa também colocar as crianças na escola e cassar a má qualidade da educação. Isso é possível, mas primeiro exige o sentimento da necessidade, o horror diante do atraso que demonstramos por conviver com essa forma contemporânea de escravid ão, a vontade de usar os recursos dos quais já dispomos para atingir estes objetivos e a competência para saber fazê-lo.

Tudo isso pode nos chegar, mas o primeiro passo é deixar de se vangloriar com o pouco feito e olhar o muito por fazer. Felizmente a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, no lugar de chamar a imprensa para dizer que o Império já tinha avançado muito ao libertar os escravos que ainda não tinham nascido e aqueles que já estavam perto da morte.

Parece que, na ética e no cinismo, a elite brasileira regrediu tanto quanto cresceu economicamente. E, por isso, ainda se desculpa do horror social, dizendo que o Brasil não cresceu suficientemente na economia. Aliás, a mesma desculpa dos escravistas para justificar o adiamento no fim da escravidão.


©Copyright   Texto escrito por Cristovam Buarque, professor da UnB, Presidente da Missão Criança e autor do livro O que é a Apartação - o Apartheid Social Brasileiro. Publicado no Correio Braziliense, Opinião, de 07/02/2001

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