NA BOCA NÃO!

Luís Fernando Veríssimo
Revista "Bundas", 18/07/2000

"As prostitutas que fazem tudo menos beijar na boca protegem a parte delas que não está à venda. Tudo o mais pertence ao mundo do comércio necessário, da submissão inevitável e da sobrevivência possível, mas beijo na boca só para o amor verdadeiro. Pode ser o cafetão, não importa. Vale o gesto de resguardo, a pequena recusa simbólica. Alguma coisa para recuperar depois.

Acho que todo mundo tem uma regra parecida, embora nem sempre se dê conta. Podemos passar a vida inteira sem sermos testados, sem descobrir qual é esse limite do que nos permitimos. Mas quase sempre chega um momento em que é preciso definir até que ponto nós vamos. O que a gente, definitivamente, não faz. Que convicção nós traímos, que território interior não cedemos por qualquer dinheiro ou conveniência. O momento de dizer "Na boca não".

Pode ser difícil identificar o momento, ainda mais para quem vive num mundo em que transigência se confunde com astúcia e quase tudo pode ser justificado como estratégia política. O Éfe Agá (Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil), por exemplo, teria uma explicação coerente para tudo o que se permitiu fazer para chegar aonde está. As concessões, as alianças, as contradições, tudo. Tratava-se da sobrevivência do seu projeto político pessoal e do seu projeto para o país, e por mais que você achasse que o projeto estava errado não podia negar que havia uma coerência maior na soma de incoerências do ex-pensador de esquerda. Mas chegou o momento de identificar o ponto intransponível, o ponto de recusa, e o Éfe Agá não o identificou.

Quando o Eduardo Jorge pediu a sua colaboração para eleger Roriz e o Luiz Estevão contra o Cristovam Buarque, em Brasília, Éfe Agá deveria ter tido o seu instante de revelação. Em nome de tudo o que ele pensou e foi, ou pensou que foi, no passado, deveria ter saltado da cadeira presidencial e gritado "Meu Deus, onde é que vim parar?" Ou: "Meu Deus, com quem que eu fui me meter?" Ou: "Eduardo Jorge, na boca não".

Mas Éfe Agá não notou que tinha chegado ao seu ponto sem volta, concordou em apoiar Roriz e Estevão, e hoje não pode nem alegar que não sabia com quem estava tratando, nos seus quinze anos com Eduardo Jorge, nem que não vendera, realmente, sua alma ao diabo, apenas fizera um leasing.

Agora não há mais nada para recuperar."



Luís Fernando Veríssimo Esse texto foi publicado pela Revista "Bundas", no dia 18 de julho de 2000.

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